terça-feira, 8 de junho de 2010

A Cegueira de Dáfenis

Mensagens!A CEGUEIRA DE DÁFNIS

Dáfnis era filho de Mercúrio e de uma obscura ninfa da Sicília. Desde cedo
foi para os bosques, onde se tornou amigo de Pã, o deus amante da música. Com ele
aprendeu a compor versos e executar em sua flauta as mais belas melodias que ecoavam
pelos vales, trazendo alegria a todas as criaturas dos bosques.

Dáfnis, quando é que você vai se apaixonar de verdade? perguntava-lhe
sempre o deus dos pés de bode.

Por que me diz isto todos os dias? quis saber o pastor.

Suas canções são belas, e sua música, insuperável respondeu Pã, reclinado
sob a sombra de uma árvore. Mas falta o amor nos seus versos, e a sua poesia só
será perfeita no dia em que você viver um grande e inesquecível amor.

Inesquecível, divino Pã? perguntou o pastor, com um sorriso. E há tal
coisa? O deus lembrou-se, então, da ninfa Siringe, que havia amado e perdido há muito
tempo.

Essa flauta que você tem aí é a melhor prova do que afirmo disse Pã, silenciand
o a sua dor, que ameaçava retornar mais uma vez.

Dáfnis observou a flauta: vários caniços, de vários tamanhos, unidos com cera.
Sim, o velho Pã já havia lhe contado várias vezes que eram feitos do corpo de sua
amada, que convertera-se em um grande junco ao tentar escapar de seus rudes afagos.
Para tê-la sempre consigo, ele arrancara o junco do solo e o transformara naquela
flauta. Uma bela história, pensou Dáfnis, mas ele não tinha tanta pressa de amar,
como tinha de cantar. Por isso, recomeçou a tocar a sua flauta, alegre e despreocupado
como sempre.

Mas um dia sua bela música atraiu uma ninfa chamada Lice até o bosque.

Quem é esse pastor que canta e toca de maneira tão bela? perguntou Lice
às amigas ninfas.

É Dáfnis, filho de Mercúrio respondeu uma delas.

O pastor havia se deitado na grama, às margens de um pequeno córrego; uma
brisa suave e refrescante aliviava o calor da tarde. Tendo despido o manto, mantinha
agora uma de suas pernas mergulhada dentro da água corrente, enquanto escutava, de
olhos fechados, o dia passar.

De repente, porém, sentiu atrás de si uma presença.

Não, não abra os olhos... disse a ninfa Lice, pousando suas mãos sobre
as vistas do jovem pastor.

Dáfnis sorriu; a ninfa que tivesse uma voz cristalina e mãos de seda como
aquelas não poderia deixar de ser bela; por isso decidiu obedecer cegamente àquela
suave imposição. Em seguida escutou um ruído quase imperceptível, de algo muito volátil
e delicado que escorresse do alto por uma superfície macia até ir embolar-se na relva.
Sentiu ainda que aquilo um provável véu fora depositado sobre o seu manto, que
estava ao seu lado. Finalmente, sentiu nas costas, que estavam em contato com o solo,
um ligeiro tremor, como se alguém houvesse estendido um corpo, quase diáfano, ao
lado do seu.

O que temos aqui? disse a mesma voz, pousando a mão sobre o ventre de
Dáfnis. Este, num reflexo, movimentou suas pálpebras, mas aquela doce mão, num gesto
veloz, as cerrou outra vez. Não... lembre-se de nosso trato! disse a voz feminina,
docemente impositiva.

Pousada sobre o ventre do pastor estava sua flauta de vários tubos, presente
do deus Pã, que se movimentava ao sabor de sua respiração talvez um pouco mais
apressada, agora, do que antes da chegada daquela excitante intrusa.

Tomando a flauta em suas mãos, a ninfa Lice tentou tirar dela algumas notas,
que não soaram nada mal aos ouvidos de Dáfnis.

Nada mal, para quem se exercita pela primeira vez... disse Dáfnis, estendendo
a mão para retomar o instrumento.

Mas em vez da flauta, suas mãos tocaram as de sua misteriosa companheira.
O pastor tentou novamente abrir suas pálpebras, mas a ninfa persistia em sua atitude
proibitiva. Sem meios, então, de resistir às ordens da ninfa, Dáfnis decidiu permanecer
deitado lado a lado com ela na relva, conversando e cantando, enquanto ia desenhando
mentalmente o seu retrato.

De repente um trovão rolou pelo céu e uma chuva intensa desabou sobre seus
corpos nus. Dáfnis e Lice deixaram que as gotas se espalhassem pelos seus corpos,
numa divertida brincadeira de cócegas, até que a chuva, tornando-se muito forte,
obrigou finalmente a ninfa a erguer-se. Dáfnis aproveitou, então, para abrir os olhos.

Pela primeira vez enxergava a imagem da ninfa, ainda que pouco nítida por
causa da chuva. Era como se a visse por detrás de um espelho lavado por um jato constante
de água. Mas mesmo assim não havia a menor dúvida: era exatamente a mulher que imaginara,
traço por traço.

No mesmo instante Dáfnis e Lice uniram seus corpos e suas almas, e a partir
daí as suas vozes unidas alegraram duplamente os bosques, com canções que falavam
de um amor profundo e real.

Mas havia uma nota de melancolia na voz de Lice que somente um ouvido bem
treinado podia perceber: ela denunciava o medo da separação temor constante que
ronda todas as uniões, porque nada há neste mundo que não esteja sujeito a ela. Lice,
contudo, pressentia a separação para muito em breve, sem saber dizer o porquê.

Dáfnis, meu amor disse ela, um dia, ao pastor -, prometa que jamais me
esquecerá.

Claro, Lice querida disse-lhe o pastor, com ar despreocupado. Como poderia
esquecê-la?

Espere disse ela, pondo a mão em sua boca. Preciso escutar isto dos
seus olhos.

Mas Lice, querida, desde quando os olhos conversam... tentou completar o
pastor, porém sem sucesso; Lice havia selado os lábios de Dáfnis com um beijo, e
agora, encarando firmemente seus olhos, buscava neles a confirmação de suas palavras.

Lice, querida disse, afinal, o pastor, tentando acalmar seus temores.
-Se algum dia eu ousar esquecê-la, quero que os seus olhos sequem a luz dos meus!
Assim, impedido de enxergar outro rosto, só terei o seu para relembrar eternamente.

E com essa promessa renovaram seus votos de um novo e ardente amor.

O tempo passou, e Lice foi acalmando suas apreensões.

Um dia Dáfnis, cansado de tanto conduzir seus rebanhos, sentou-se, como da
outra vez, debaixo da sombra de uma árvore frondosa. Tomando de sua flauta, começou,
então, a tocá-la. Era uma melodia que compusera especialmente para sua amada. Toda
vez que a tocava podia enxergá-la perfeitamente nítida seu corpo nu, seus cabelos
naturalmente esvoaçantes, sua boca úmida e seus olhos cálidos, embora sempre com
aquela pequena nota angustiada, bem lá no fundo das pupilas da imagem amada.

Mas o pastor havia se afastado mais do que o habitual e, por isto, não percebeu
que logo além de onde estava havia um palácio, e que em uma de suas janelas havia
uma princesa que ninguém queria. E ela estava atônita com a beleza de Dáfnis e da
sua melodia.

Em quem pensará? perguntava-se a princesa indesejada, desejosa de ser
a inspiradora daqueles belos acordes.

Mas logo em seguida teve sua visão atraída por um brilho estranho. Um pouco
acima da copa das árvores que davam sombra ao pastor, formava-se, cada vez mais nítida,
a efígie vaporosa de uma mulher.

E ela, a dona da sua inspiração exclamou a mal-amada princesa.

A medida que a música se tornava mais apaixonante, mais a bruma adquiria o
contorno definitivo do corpo de uma mulher, formado pela lenta evaporação das notas
ardentes que subiam da mata, feito a fumaça de um desejo incandescido.

Por Vênus, como é bela sussurrou a princesa.

Suspensa acima das ramas verdejantes e revirando-se inquieta sobre seu leito
esverdeado flutuava a imagem de Lice. Estava inteiramente nua, e pelo modo inquieto
como se mexia, fazendo deslizar pelo corpo as pontas dos seus dedos aquilinos, logo
deu a entender à princesa que dormia, presa de um sonho intenso de amor. E os dedos,
apesar de serem os delas, tinham o toque evidente de um homem apaixonado.

Então a ilusória imagem da ninfa virou o rosto em sua direção: de fato, nem
de longe tinha os pobres traços da rica princesa.

\"Não, não sou eu...\", pensou ela, desconsolada.

Abatida, a princesa abandonou a janela e foi encostar-se à parede, do outro
lado do quarto. Suas costas deslizaram insensivelmente para baixo até deixá-la sentada
no chão, abraçada aos joelhos. \"Não, não sou eu\", repetiu, sentindo sua respiração
arfante umedecer seus ossudos joelhos. De repente, num impulso, fechou também os
olhos e beijou ardentemente os próprios joelhos! Mas seja por eles não terem respondido
ao seu desejo ou por ela não ter lá muita imaginação, o fato é que os mordeu com
fúria, logo em seguida.

Pois se é uma visão, farei com que desapareça! exclamou, pondo-se em pé,
num salto, tomada pela raiva.

Sem perceber que seus joelhos sangravam, correu outra vez até a janela. Seus
olhos, contudo, foram brindados agora com uma alegre visão: o pastor vinha vindo
justamente em direção ao palácio!

Dáfnis chegou até o pé da janela e gritou:

Por favor, gentil princesa, poderia me alcançar um gole de água?

Claro, pastor, já desço com ela!

Infelizmente esta gentil princesa tinha o hábito de distrair a sua solidão
da pior maneira, pois também era uma terrível feiticeira. Assim, antes de levar o
copo com a água, introduziu nele um pouco do sumo da erva mágica do esquecimento.

Aqui está! disse ela, estendendo a beberagem maldita ao sedento pastor.
Dáfnis bebeu a água de um só trago e no mesmo instante sentiu que a imagem de sua
amada Lice desaparecia de sua mente. Apavorado, estendeu as mãos, como que para agarrá-la,
mas ela retrocedia cada vez mais, até esfumar-se definitivamente no ar.

A princesa, percebendo o efeito de sua poção, perguntou-lhe:

O que houve, belo pastor?

Não sei respondeu Dáfnis, passando a mão pela testa. Tenho a impressão
de que esqueci algo muito importante...

Venha, entre comigo disse a princesa, pondo na voz o pegajoso mel da luxúria.
Tratemos, então, de fazer algo de que não esqueçamos jamais.

No dia seguinte Lice foi informada de que seu amado Dáfnis ainda estava nos
braços da terrível princesa. Desesperada, correu até os portões e tentou forçá-los,
mas foi expulsa rudemente pelos sentinelas.

Da janela surgiu, então, Dáfnis, com ar de sono.

Quem é esta louca, soldados, e o que deseja de nós?

Nós?! exclamou a ninfa.

Com a mão ressequida, que ainda assim bastava para cobrir seu peito mirrado,
a radiante princesa veio logo postar-se atrás do pastor.

Era esta a resposta!

Lice, dali mesmo de onde estava, encarou os olhos de Dáfnis, profundamente.
E nesse exato instante o pastor lembrou-se de tudo: da ninfa que amara, dos momentos
felizes que haviam gozado e também da terrível promessa que lhe fizera.

Desta vez, porém, não foi somente o rosto da ninfa que desapareceu diante
de seus olhos, mas a própria luz de tudo que o envolvia. Dáfnis estava cego -irremediavelm
ente cego para o resto da vida!

E assim passou o resto de seus dias, vítima de uma cilada e de um deslize,
vagando cego pelos bosques e montanhas. Nunca, porém, suas canções e melodias haviam
sido tão belas horrenda contradição do amor, que mais pungente se torna quanto
mais tenazmente o destino o persegue! -, a ponto do deus Pã reconhecer que agora
e somente agora sua arte se tornara absolutamente perfeita.

Por toda parte onde Dáfnis errava, com efeito, podia-se ver pairada no ar,
por alguns breves instantes, a imagem sempre evanescente de sua amada Lice, que morrera
de infelicidade. Até que um dia o pastor, cansado de tanto sofrer, subiu até o mais
alto penhasco e ali estendeu os braços para o alto, na tentativa enlouquecida de
agarrar as formas vaporosas daquela que ainda amava pois a única coisa que ainda
enxergava neste mundo era a efígie ilusória da ninfa perdida. Falseando o pé, entretanto,
mergulhou no abismo, feliz de pôr um fim involuntário a tanta desdita.

Diz a lenda, contudo, que seu pai, Mercúrio, que a tudo assistia, calçou rapidament
e as suas velozes sandálias e raptou sua alma antes que o corpo se esmagasse nas
rochas. Indo além, diz-se ainda que no mesmo dia o pastor deu entrada no Olimpo,
para fazer companhia aos deuses, tendo ao lado sua amada Lice, que ao cabo de tudo
o perdoou, afinal.

(do livro
AS MELHORES HISTÓRIAS DA MITOLOGIA
Deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana
A. S. Franchini / Carmen Seganfredo)

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